A SEGUNDA VIDA DE OSAMU DAZAI: UMA BREVE ANÁLISE DA PRÁTICA DE RECRIAR FIGURAS HISTÓRICAS EM MÍDIAS CONTEMPORÂNEAS

Mai
10 min readJul 24, 2019

Não é novidade que autores contemporâneos, principalmente de mídias visuais — como quadrinhos e animações, por exemplo — recriem versões próprias de personagens ou personalidades já conhecidas por uma ou outra razão. Em pesquisa inicial por possíveis pesquisas que se utilizassem do mesmo referencial, foram encontrados com facilidade os artigos de Pereira (2016) e Oliveira (2013), entre outros, que tinham como objeto de estudo a graphic novel de Alan Moore e Kevin O’Neill. A HQ em questão tem como protagonistas figuras celebradas da literatura vitoriana, como Mina Harker née Murray, saída de Dracula, romance de Bram Stoker, e Henry Jekyll e Edward Hyde, criações de Robert Louis Stevenson. Os autores partem das teorias de intertextualidade — principalmente as de Kristeva, baseadas nas de Bakhtin sobre dialogismo — para analisar como a permanência de determinadas características dos personagens criam uma ligação entre clássico e contemporâneo. Como ambos os trabalhos partem do princípio da intertextualidade para basearem suas análises, chegou-se à conclusão de que os mesmos fundamentos poderiam ser aplicados a outras obras ficcionais. No caso deste resumo estendido, o corpus é a adaptação animada do mangá Bungou Stray Dogs, escrito por Kafka Asagiri e ilustrado por Sango Harukawa, feita pelo estúdio japonês Bones. O enredo é focado na disputa entre facções de humanos dotados de poderes sobrenaturais pela cidade portuária de Yokohama, sendo esta uma versão quase idêntica àquela real; cada um desses grupos é formado por personagens baseados em escritores japoneses famosos no país, aos quais são acrescidos depois autores conhecidos e celebrados mundialmente. A relação com intertextualidade está na origem dos protagonistas e coadjuvantes: em sua maioria, eles são inspirados em autores e escritores reais, compartilhando com eles seus nomes e certos traços de personalidade que futuramente tornam-se importantes para o enredo.

Também, os “poderes” possuídos por essas figuras ficcionais são nomeados de acordo com obras de suas contrapartes literárias, como será visto na próxima seção deste trabalho. Sendo assim, tendo como base textos sobre os conceitos de intertextualidade e outros artigos, como os citados acima, com temática pertinente, será discutida a seguir a perpetuação de um nome ou história por meio de sua justaposição e inserção em mídias contemporâneas, geralmente acrescidas de transformações pertinentes ao enredo, frutos da licença poética. Por fim, a hipótese defendida é a de que a recriação torna-se uma ferramenta notável para que seja criada uma ponte entre a arte canônica, muitas vezes rechaçada ou ignorada pelas gerações mais jovens, e um novo público consumidor, o qual tomaria interesse justamente pelo contato com as versões menos ortodoxas de nomes há muito celebrados.

Já há tempo que versões modernizadas ou adaptadas de obras clássicas surgem nas prateleiras e telas de televisão. Pode-se tomar como exemplo a série Elementary, uma versão modernizada e modificada das histórias de detetive de Arthur Conan Doyle televisionada pela americana CBS, assim como Sherlock, produzida pela emissora inglesa BBC. A literatura brasileira também tem sua contribuição com a série de livros infanto-juvenis Descobrindo os Clássicos da editora Scipione, com releituras metadiscursivas de O alienista e Dom Casmurro, de Machado de Assis, entre outros. Nesse caso em especial, a “reforma” pode ser um esforço para alcançar as gerações mais jovens, trazendo o enredo original para uma realidade mais próxima daquela vivenciada pelos leitores adolescentes. Por outro lado, a indústria japonesa tem seu estilo próprio de adaptar histórias já conhecidas; uma mesma figura histórica, por exemplo, pode ser representada com ênfase em uma ou outra característica específica, de acordo com o enredo em questão. Essa mudança geralmente vem acompanhada de uma transformação estética, em que certo padrão de design é seguido para que os públicos alvos sejam alcançados com mais eficiência. Um exemplo pertinente seria a franquia de Fate, que conta com jogos, mangás e séries animadas, e tem como protagonista a versão feminina do Rei Arthur, a qual é invocada como uma espécie de soldado sobrenatural para lutar pela posse do Santo Graal. Oliveira (2013, p. 32–33) afirma que “As relações dialógicas entre os textos ou intertextuais, por sua vez, ocorrem quando um texto se relaciona com outro texto, isto é, com outra materialidade lingüística”. Em todos os casos até agora citados como exemplos ficam evidentes as diversas referências a mais de uma fonte de inspiração — relações dialógicas, quase simbióticas, entre enunciados — à qual se mesclam novos rostos, relacionamentos e traços de personalidade. Quanto a Bungou Stray Dogs, mais especificamente, devido à extensão do elenco de personagens, foi escolhido apenas um para que seja usado como exemplo, considerando-se seu papel no enredo e suas particularidades em relação a sua contraparte real. Também, a série animada será favorecida como referencial por ser mais concisa e recente que a história em quadrinhos. As seções a seguir tratarão de forma mais específica o personagem ficcional de Kafka Asagiri e o escritor Osamu Dazai, ao qual, a partir deste momento, referir-se-á como o Autor. Pessoa versus personagem Osamu Dazai, nascido Shuji Tsushima, é um dos mais emblemáticos autores japoneses do século XX, tendo o romance Declínio de um homem — publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade — como sua obra mais conhecida. Na história, o protagonista Yozo explicita em primeira pessoa seus conflitos consigo mesmo e suas concepções do que é ser humano; a constante dúvida leva ao pavor e à derrocada social, fazendo com que o jovem distancie-se cada vez mais de si mesmo e das pessoas ao redor. Essa espécie de conturbação não é completamente estranha à população jovem que leria o livro atualmente, e a sensação de ser compreendido pode ser uma das razões pelas quais o personagem Dazai — criado por Asagiri e interpretado na animação do estúdio Bones pelo dublador Mamoru Miyano — seja um dos mais populares da série. Podem ser estabelecidos paralelos do personagem tanto com o Autor quanto com Yozo; segundo Wolfe (1990, p. XIV): “The Dazai protagonist as well as the Dazai author-artist are simultaneously victim and victimizer, ultimately impotent […] to control their own aftertext, its reading or rewriting”. As semelhanças das duas figuras em questão são aglutinadas e incorporadas ao personagem Dazai da série animada, o qual, apesar de manter o pessimismo e a melancolia como alicerces de sua personalidade, ganhou de Asagiri e Harukawa traços próprios, que o identificam como uma terceira parte do todo que poderia servir como uma nova imagem do autor de Declínio de um homem. Osamu Dazai é introduzido no enredo quando o protagonista Atsushi Nakajima o encontra flutuando em um rio; quando questionado, Dazai afirma que estava colocando em prática seu mais recente plano de suicídio. Enquanto as piadas a esse respeito podem soar amargas e até de mau gosto, mas elas fazem parte da construção da primeira impressão do personagem, tanto para Atsushi quanto para o espectador. Ao longo dos primeiros episódios, Dazai se apresenta como uma mistura dos arquétipos do Mentor e do Trickster; segundo o arquétipo de Jung, “The trickster seems to be a comedy of opposites. For every good aspect of his persona there is an equal and opposite aspect” (CARL…, 2017), faceta esta contrastada por sua missão auto delegada como instrutor, um papel cuja definição pode ser encontrada na citação de artigo do site TV Tropes (2017): “A more experienced advisor or confidante to a young, inexperienced character, particularly to a hero”. Em meio às peças pregadas pelo detetive em seus colegas de agência, Dazai guia Atsushi (o Heroi) em sua jornada rumo à auto compreensão — conceito que, aqui, engloba tanto sua visão de si mesmo como portador de habilidades especiais como também os papeis que ele poderia exercer em seu contexto social. Enquanto cumpre seu papel de conselheiro para Atsushi, Dazai cursa sua própria trilha em busca da autognosia, refletindo em seu desenvolvimento durante o enredo a batalha interna de Yozo por estabelecer, principalmente para si mesmo, uma razão que ele considerasse válida para se adequar e adaptar às condições, vistas por ele, como extremamente desfavoráveis — se não atormentadoras — a que era diariamente submetido no convívio com outros humanos. Wolfe (1990) reafirma as dificuldades de relacionamento do Autor com a família e colegas de escola no prefácio de seu livro Suicidal Narrative in Modern Japan: The Case of Osamu Dazai. Dazai, a princípio, não aparenta esse tipo de dificuldade nos primeiros episódios da animação, mas novamente a complexidade de caráter do personagem é retratada e apreendida por Atsushi. Dazai apesar de não ser o real protagonista da história, tem em Bungou Stray Dogs o que é chamado de arco de redenção: um espaço temporal dentro do enredo em que determinado personagem sofre as conseqüências de ações malévolas e passa por um processo de transformação de atitude. O anime cobre esse período nos quatro primeiros episódios da segunda temporada, os quais se passam quatro anos antes da linha do tempo atual e mostram Dazai antes de sua modificação de caráter. Apelidada pelos fãs como Mafia!Dazai, a versão mais jovem do mentor de Atsushi já era brilhante intelectualmente e não fazia questão de ser discreto ou solícito; entretanto, suas ações eram muito mais violentas e por conta de sua eficiência e brutalidade, ele logo se tornou um dos chefes da Máfia do Porto — facção que antagoniza a Agência de Detetives à qual Dazai e Atsushi pertencem na atual linha do tempo. Tal Era das Trevas de Dazai pode ser relacionada tanto à passagem curta do Autor por grupos do movimento comunista em sua juventude quanto à depravação a que Yozo se entregou assim que se mudou sozinho para Tóquio, no romance Declínio de um homem. A diferença é que, enquanto os predecessores real e fictício de Dazai foram apenas impulsionados negativamente por esse período de negatividade, o detetive de Asagiri teve sua redenção e salvação garantida pela versão animada de Sakunosuke Oda — com quem o Autor conviveu durante algum tempo. Dentro da história de Bungou Stray Dogs, Oda cumpriu o papel de Mentor para o jovem e angustiado Personagem Dazai preparando-o para cumprir seu novo papel no enredo e, também, servindo como um sinal de esperança para os espectadores, principalmente para aqueles que se identificam com os conflitos representados. Personagem versus obra Além dos paralelos entre personagem e autor, há também a denominação das habilidades sobrenaturais, nomeadas por Kafka Asagiri de acordo com a ou as principais obras de cada escritor. A peculiaridade de Dazai, Ningen Shikkaku, serve para neutralizar poderes de outros personagens por meio de um toque; a nulificação se relaciona com a temática de Declínio de um homem quando se leva em conta o conflito central do livro: o que é ser humano? No caso dos personagens de Bungou Stray Dogs, sua habilidade é uma representação externa de si mesmos, uma identidade revelada aos outros — identidade esta que é invalidada pelo toque de Dazai; a capacidade de apagar algo que torna o outro alguém individual remete à extrema dificuldade que Yozo apresentava em lidar com as pessoas de seu círculo social, atenuando sua própria autenticidade em prol de manter-se camuflado em seus ambientes. O desconforto próprio é transferido para aqueles neutralizados, os quais perdem — ainda que momentaneamente — uma característica os definem e destacam entre os grupos com os quais convivem. Há ainda o fator de aproximação entre espectador e personagem: Osamu Dazai alcança o público por representar uma imagem que lhes é familiar: alguém que esconde seus conflitos internos em prol de manter relacionamentos ou fugir, ainda que temporariamente, das batalhas travadas na mente. A obra do AutorDazai fortalece essa impressão, e em pesquisa feita informalmente pela autora deste trabalho, 11 das 17 respostas à questão “Escreva abaixo quais autores chamaram sua atenção o suficiente para que você se interessasse por seus trabalhos literários” incluíram o autor japonês. É notável também que escritores ocidentais estejam entre aqueles citados, já que sua aparição no enredo do anime parece ter acendido uma faísca de interesse provavelmente abafada por pré-concepções de literatura clássica. Considerações finais Esses são, entre outros, exemplos de similaridades entre real e ficcional quanto ao personagem de Osamu Dazai em Bungou Stray Dogs; como é possível concluir a partir dos diversos exemplos de releituras de clássicos, a recriação de algo já conhecido ajuda a aproximar o novo público, que se identifica logo com as características adicionadas posteriormente — no caso de Bungou Stray Dogs, o visual estético e os poderes sobrenaturais — e incentiva esses espectadores a se verem, também, em obras anteriores a sua época, a compreenderem sua importância, ainda que sejam apresentadas a eles em uma roupagem diferente. Pode-se concluir, então, que mídias mais recentes e muitas vezes dispensadas por sua informalidade são ferramentas de potencial considerável para o incentivo à busca por arte canônica — mais especificamente a literária, no caso de Bungou Stray Dogs. A nova vida dada a figuras que de outra forma teriam sua importância diluída em meio às pré-concepções e falta de conhecimento prova-se, ainda que por meio de pesquisa informal, válida e pertinente, não só como método de aplicável dentro do sistema regular de ensino, mas como uma junção atrativa e divertida entre cultura canônica e mídias pop. É mais do que possível associar ensino e entretenimento, e os fãs de Bungou Stray Dogs, entre muitos outros, são comprovação do fato. Pretende-se, então, a partir desta análise mais superficial, estudar os processos que levam aos resultados parciais aqui relatados. Com pesquisa mais aprofundada, incluindo referências citadas nos trabalhos que aqui foram utilizados como fonte de informação a respeito dos princípios de intertextualidade, é bastante provável que mais argumentos sejam encontrados que corroborem as impressões a que se chegou com este resumo estendido.

Referências

BUNGOU Stray Dogs. Direção de Takuya Igarashi. Roteiro: Youji Enokido. Tóquio: Bones, 2016. Son., color. Legendado.

CARL Jung’s Archetype: The Trickster. The Trickster. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017.

DAZAI, Osamu. Declínio De Um Homem. São Paulo: Liberdade, 2015. 152 p. Tradução de Ricardo Machado.

___________. Ningen Shikkaku. Tóquio: Shinchosha, 2016. 185 p.

MENTOR Archetype. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017.

OLIVEIRA, Marco Antonio Francelino de. DEPOIS DA ÚLTIMA PÁGINA: I NTERTEXTUALIDADE ENTRE HQS E LITERATURA NA GRAPHIC NOVEL A LIGA EXTRAORDINÁRIA. 2013. 187 f. Dissertação (Mestrado) — Curso de Pós — Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/106909/319584.pdf?seq uence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 12 nov. 2017.

PEREIRA, Ismael Bernardo. A INTERTEXTUALIDADE COMO ELEMENTO FUNDADOR N’A LIGA EXTRAORDINÁRIA. Cadernos do IL, n. 53, p. 204- 215.

WOLFE, Alan Stephen. Suicidal Narrative in Modern Japan: The Case of Dazai Osamu. Princeton: Princeton University Press, 1990.

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.