Covardia e Aceitação como caraterísticas de Atsushi Nakajima em Bungou Stray Dogs, ou mais uma análise com paralelos entre Autor e Personagem homônimos

Mai
8 min readAug 10, 2019

Apesar da extravagância de Dazai roubar a cena em muitas ocasiões, Atsushi Nakajima é o real protagonista de Bungou Stray Dogs. Começo dizendo isso porque, em inúmeras ocasiões, li ou ouvi que Atsushi era “apagado demais” para ser considerado personagem principal do anime e do mangá. Ainda que esse argumento seja levado em conta, em uma história na qual a principal batalha dos personagens é encontrar a si mesmos e reconhecer sua validade como seres humanos, seria superficial — para dizer o mínimo — encarar a caracterização de Atsushi dessa forma.

Atsushi Nakajima começa a narrar sua própria história à beira da morte, depois de ser expulso do único lugar que poderia ter chamado de “lar”. Assim como o protagonista do conto Rashoumon, de Ryunosuke Akutagawa, o garoto hesita em abrir mão de seus princípios em prol de sua sobrevivência e, mesmo quando parece ter se decidido, arrisca a própria vida, por puro instinto para salvar um completo desconhecido do afogamento. A questão de ser capaz de proteger o outro é recorrente nos conflitos de Atsushi, mesmo depois de sua entrada para a Agência; dá para concluir, então, que o reconhecimento externo seja o fator de destaque aqui: as pessoas só são válidas se isso for dito ou confirmado por um outro alguém.

Neste ponto, enxergamos a primeira conexão com Sangatsuki (ou The Moon Over The Mountain, na tradução para o inglês), o conto que inspirou a habilidade de Atsushi, Besta Sob o Luar. Antes de ir mais a fundo no enredo, porém, cabe introduzir o autor Atsushi Nakajima: nascido no ano de 1909 em Tóquio, o escritor morreu jovem, aos 33 anos.

Nakajima-sensei teve contato com a literatura clássica chinesa desde muito cedo, e aí começou seu fascínio pelas histórias passadas oralmente desde tempos passados. Sangetsuki é, na verdade, a versão própria do autor de um conto antigo, cujo protagonista (um aspirante a poeta que teve mais sorte no exército), apesar de ter em si a habilidade natural e a capacidade para se desenvolver, não enxerga essas características como suficientes. Desiludido com a falta de sucesso, segundo sua própria perspectiva, ele parte para uma vila erma e, depois de se perder em uma floresta dita amaldiçoada e assombrada por um grande tigre branco comedor de homens, ele próprio se transforma na fera, e acaba por perder sua consciência como ser humano. Como fã de Franz Kafka e sendo considerado um escritor existencialista, pode ser que Nakajima-sensei tenha se inspirado em A Metamorfose ao registrar a história chinesa em japonês; o questionamento a respeito de si mesmo e a falta de confiança podem ser apontadas tanto no protagonista do conto quanto no personagem Atsushi.

Também, assim como o militar em Sangetsuki perde a consciência de si mesmo no final do conto, Atsushi a princípio não tem lembranças de quando se transforma em tigre sob a luz da lua cheia. Sua consciência, aquilo que o define como ser humano, some para dar lugar a nada além de puro instinto de sobrevivência — exatamente o que quase convenceu Atsushi a atacar alguém para se salvar. Para o jovem, o animal não passa de uma besta destruidora que o persegue para transformá-lo em jantar. O susto inicial ao descobrir que ele mesmo é a fera dita assassina é substituído pelo medo de si mesmo e do que pode fazer caso se transforme abruptamente: Atsushi receia que o tigre acabe se libertando repentinamente, fugindo de seu controle fraco e vacilante. Desde muito jovem, o garoto se via em condições de vida precárias, sofrendo inúmeros abusos tanto físicos quanto psicológicos — não é de se espantar que ele tenha praticamente zero confiança em seu autocontrole e sua capacidade de evoluir.

Atsushi se enxerga como um covarde; alguém que, na primeira oportunidade, foge de quaisquer problemas, desafios ou adversidades. Exatamente como o protagonista em Sangetsuki, que abandona seus objetivos antes mesmo de tentar sobrepor obstáculos ocasionais simplesmente por temer uma possível falha — não é medo de tentar, mas sim um pavor anormal do fracasso e de suas consequências. Entretanto, as ações de Atsushi se provam contrárias a essa suposição: apesar da hesitação inicial, ele salva Dazai do afogamento, arriscando a própria vida (apesar de ter levado um puxão de orelha depois); na situação do trem com as bombas, mesmo se sentindo culpado por ter inadvertidamente envolvido os outros passageiros em situação de perigo, o jovem segue as ordens de Akiko Yosano, parte para a frente de batalha e, no momento crucial em que descobre ser impossível desativar a bomba presa a Kyouka Izumi remotamente, ele não pensa duas vezes antes de usar sua força extra-humana para salvar a garota e a si mesmo. O ponto-chave na auto-aceitação de Atsushi é a capacidade de proteger. No guidebook da primeira temporada, uma das falas destacadas do personagem é “Eu luto para proteger outras pessoas” — a habilidade Besta Sob O Luar serve não para ataques ou violência pura, mas para salvar aqueles que precisam dessa ajuda que só Atsushi, por qualquer seja a razão, pode oferecer.

Essa dificuldade em se perceber como digno de atenção e reconhecimento pode ser resumida em um termo: síndrome do impostor. A sensação de ser inferior a seus pares mesmo quando seu nível de competência equivale ao deles é recorrente em BSD, e não é raro ver personagens da trama de Kafka Asagiri se enxergando como não merecedores de elogios recebidos, ou ainda que, no caso de Atsushi, hesitam quando têm tarefas dadas a eles, justamente porque duvidam de sua capacidade para cumpri-las. A falta de autoconfiança do “tigromem” é o cerne de sua disputa com Akutagawa; enquanto o jovem mafioso vê em reagir violentamente aos estímulos adversos que recebe como a melhor maneira de sobreviver, Atsushi adota uma postura passiva, sem perceber que ele tem tanto a força para se proteger quanto para se afirmar como membro da Agência e como ser humano. Akutagawa enxerga em Atsushi uma covardia que ele despreza, justamente porque aparentemente o a passividade de Atsushi lhe rende mais reconhecimento que sua assertividade violenta produz em seus superiores, principalmente no que diz respeito à forma que Dazai reage a esses respectivos métodos.

Aliás, pode-se dizer que essas são características herdadas de seu homônimo da vida real: também segundo o guidebook, Nakajima-sensei conquistou de primeira a atenção de suas alunas quando foi professor de Ensino Médio em uma escola só para garotas; elas se sentiam compelidas a cuidar e se preocupar com seu tutor, já que ele parecia muito mais frágil do que alguém em sua posição deveria ser — nas palavras do guidebook, tanto autor quanto personagem despertavam um “instinto maternal” nas pessoas ao redor. Da mesma maneira, muitos dos personagens de Bungou Stray Dogs — especialmente na Agência de Detetives Armada — acaba se encontrando em uma posição quase parental ou de mentor com o recém-chegado usuário de habilidade. De certa forma, todos os membros precisaram passar pela prova de fogo de se aceitarem como ser humanos falhos, e aprenderem que suas fraquezas não os fazem menos dignos ou capazes. No universo canônico, o ambiente positivo de superação que Atsushi encontra na Agência impulsiona o garoto a encontrar em si aquilo que ele admira em seus colegas. Ele não mais se sente sozinho, e aos poucos se acostuma à ideia de que, mesmo que de maneira diferente, cada um dos membros daquele grupo de desajustados é tão humano, falho e cheio de possibilidades quanto ele mesmo. Já no universo alternativo de Beast, em que Atsushi é recrutado pela Máfia do Porto, sua passividade é usada contra ele; Atsushi é acuado o tempo todo por erros de um passado de que ele se arrepende, e a figura do Diretor do orfanato o assombra muito com muito mais intensidade. É interessante perceber como ambientes diferentes proporcionam desenvolvimentos diferentes para personagens que, tendo suas características essenciais devidamente mantidas, reagem de jeito diverso a certas situações, de acordo com o grupo que os cerca.

A partir do momento em que Atsushi aceita e abraça o tigre como parte de si mesmo, suas dúvidas começam a esmaecer; ele ainda tem inseguranças, mas pouco a pouco avança na direção de reconhecer suas fraquezas e aprender a lidar com elas. O garoto-tigre de Asagiri ultrapassa, nesse sentido, sua contraparte em Sangetsuki: enquanto o aspirante a escritor se esconde do fracasso, Atsushi tenta encarar de frente suas falhas e, apoiado por seus amigos e colegas, tenta aprender com elas. É assim que ele salva a cidade de Yokohama inúmeras vezes, e é assim que ele finalmente começa a bater de frente com Akutagawa; eles têm visões de mundo completamente diferentes, sim, mas isso não significa que uma seja superior à outra. Mais do que isso, Atsushi torna-se capaz de ver nas experiências de Akutagawa ensinamentos que pode tomar para si mesmo. Obviamente, esse crescimento não apaga os traumas e as condições tenebrosas nas quais Atsushi cresceu; ainda assim, ele teve a capacidade de transformar toda a dor em empatia, e isso é algo que Dazai aponta para o garoto logo depois que foi descoberta a morte do Diretor: apesar de ter sido criado no inferno, esse inferno fez com que Atsushi se tornasse alguém bom. Tendo conhecido o que há de pior, Atsushi entende a dor de ser maltratado e desprezado, e age justamente da forma contrária. Sua experiência no inferno possibilitou ao jovem entender o quanto o outro pode precisar de compreensão e de uma mão amiga.

O processo de cura é longo, e nem sempre linear. Atsushi, porém, cada vez mais firma o passo no caminho para se aceitar, reconhecer e respeitar como ser humano — com tigre, orfandade e tudo o mais. Aos poucos, Atsushi supera a aversão: tentar suprimir a habilidade de se transformar em um tigre imenso não foi de ajuda alguma; a partir do momento, porém, em que ele começa a abraçar essas características e aprende a controla-las, elas passam a ser úteis e fazem com que o garoto se sinta parte de algo. Não é preciso ter medo de si mesmo: a besta sob o luar não é mais uma ameaça, mas a companhia reconfortante e familiar nos momentos de aflição.

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.