Doppo Kunikida, o Poeta Solitário

Mai
5 min readApr 9, 2020

Doppo Kunikida nasceu com o nome de Tetsuo Kunikida em Chiba, no ano de 1871. Assim como muitos outros de seus contemporâneos, o escritor sentiu na pele as mudanças econômicas e sociais pelas quais o Japão passou no final do Período Edo e início do Período Meiji. A abertura das fronteiras precedeu uma onda de influência cultural vinda da Europa e dos Estados Unidos; a quebra do paradigma até então vigente desmontou — ao menos em teoria — a rígida estratificação social japonesa, o que deveria ser a oportunidade de subir na vida para aqueles que pertenciam a classes menos favorecidas. É claro que essa mudança só aconteceu no papel, e ainda era possível perceber como aqueles que já vinham de famílias mais prestigiadas continuavam a ter vantagem.

O romancista Doppo Kunikida

Os primeiros movimentos migratórios derivados dessas mudanças sociais levaram jovens de todas as vilas do interior para as cidades grandes, e o estudo formal se tornou o objetivo comum a eles. Era esse o caminho que surgira em direção ao sucesso para aqueles que não vinham de berço de ouro, ou de famílias abastadas. Esses jovens saíam então de suas casas e partiam em direção aos centros urbanos onde as escolas técnicas estavam disponíveis. O problema é que a educação custava caro, e pouquíssimos desses aplicantes à escola tinham os meios financeiros para bancar seus estudos. Foi aí que surgiram os kuugakusei, ou estudantes sofridos — esse pessoal trabalhava em períodos pré-determinados do dia e estudavam no outro. Como personagens do dia a dia nas metrópoles japonesas, os kuugakusei também se tornaram protagonistas de diversos trabalhos literários que falavam sobre a rotina exaustiva daqueles que, apesar dos obstáculos financeiros, continuavam a acreditar que conseguiriam alcançar o topo se colocassem mais esforço e dedicação.

Como jornalista, é mais que natural que Kunikida-sensei tenha se interessado por essas figuras; sua experiência como correspondente jornalístico na Guerra Nipo-Russa muito provavelmente aguçou seu olhar para aquilo que merece atenção midiática. O trabalho de Kunikida-sensei envolvendo esses personagens comuns da rotina urbana lhe rendeu um lugar no Movimento Naturalista japonês, junto com Katai Tayama. Em seus textos, Kunikida-sensei fala não sobre personagens fantásticos ou importantes politicamente, mas sobre os estudantes, os operários, aqueles que dependiam de cada centavo para sobreviver, e que passavam seus dias dentro de vagões de trem a caminho do trabalho — como o jovem estudante de Musashino.

Musashino, pela Kadokawa e Amazon

O compromisso com a realidade é evidente na literatura Naturalista, mas isso não tirou de Kunikida-sensei sua noção de Ideal: era em prol de suas esperanças e objetivos abstratos que ele escrevia. Esse quase paradoxo foi transportado por Asagiri-sensei para o personagem Doppo Kunikida de Bungou Stray Dogs.

Um dos principais atrativos no enredo de Asagiri-sensei, de modo geral, é a tonalidade cinzenta da moral dos personagens; sendo assim, a existência de um personagem como Kunikida, que é literalmente guiado por sua visão utópica de como o mundo deveria ser acaba sendo um tanto quanto intrigante. Enquanto os outros personagens assumem sua indecisão, Kunikida persiste no caminho de seu Ideal, justamente porque acredita que não há mérito em deixar-se levar pelas flutuações esporádicas de cada situação. Ao mesmo tempo em que isso soa como intransigência, pode-se também interpretar essa inflexibilidade como uma maneira de se manter fiel a si mesmo, ainda que cercado por inúmeras interpretações e visões de mundo diferentes de sua própria.

Não há dúvidas, entre os membros da Agência de Detetives Armados, de quem deve herdar a liderança da organização; Kunikida ganhou o respeito e a admiração de seus colegas por sua postura constante e por ser o modelo daquilo que todos eles precisam ser: bons e leais. É esse o objetivo de se fazer um teste com os candidatos, e é também por causa da tenacidade de Kunikida que ele ficou encarregado de lidar e aplicar o exame de admissão quando Dazai foi indicado para se juntar à Agência. Enfim, Kunikida é o maior exemplo de retidão moral dentro da organização, mesmo que essa retidão signifique, às vezes, irredutibilidade. Com tanta gente com a cabeça no mundo da lua ao seu redor, ninguém melhor que Kunikida para manter os pés bem firmes no chão. Talvez ele se sinta na obrigação de fazer isso, como sucessor do Presidente.

Ao contrário de personagens como Atsushi, cujas habilidades têm uma relação bem óbvia com a obra em que foram inspiradas, o poder de Kunikida vem de uma coletânea de poemas que o autor de mesmo nome compôs depois do divórcio com Nobuko Sasaki. Talvez, durante esses dias em que caminhou sozinho, ele tenha concluído que há certas barreiras sociais que não podem ser transpostas; que existe um limite naquilo que se pode fazer por si, e pelos outros. Quando se pensa sob esse ponto de vista, o fato de a poder do Kunikida detetive ser extremamente limitado faz todo o sentido: ele só pode reproduzir com o caderno, com sua literatura, o que já viu com os próprios olhos, dentro de sua capacidade física — milagres não existem, e só se pode fazer aquilo de que se é capaz fisicamente. Um ponto importante a ser destacado também é que Kunikida não depende somente de sua habilidade para fazer o trabalho que lhe é proposto; Kunikida é extremamente proficiente em artes marciais, e faz questão de planejar meticulosamente sua rotina para que quaisquer eventualidades sejam devidamente contornadas. Foi assim que ele salvou a própria vida e a da menina Aya quando ambos foram sequestrados e levados para os túneis do metrô — o detetive só arriscou fazer sua manobra quase suicida porque sabia que Yosano estava por perto, e poderia chegar a tempo.

Quando se fala de arte e literatura, muitas vezes o que vem à cabeça é a imagem do boêmio, do poeta inspirado; em contrapartida, o movimento artístico de que Kunikida-sensei fez parte se baseia justamente naquilo que os olhos podem ver, e não necessariamente em mundos imaginários. O Kunikida de Bungou Stray Dogs herdou o foco no agora, para que um futuro promissor chegue não por sorte, mas por esforço e dedicação.

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.