Releitura, intertextualidade e mestres literários em desenho animado

Mai
8 min readApr 30, 2020

ou um breve ensaio a respeito das diferenças e similaridades entre Bungou Stray Dogs e Bungou to Alchemist

Para quem já acompanha os jogos para navegador da DMM, como Kantai Collection e Touken Ranbu, Bungou to Alchemist, que está sendo adaptado para a televisão pelo Estúdio OLM, não é nenhuma novidade. Mas talvez alguém que não conheça esses jogos e só tenha assistido à animação de Bungou Stray Dogs possa chegar à pergunta: certo, os dois têm “bungou” no nome, mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Se você é uma dessas pessoas, esse é o lugar certo para responder sua pergunta.

Osamu Dazai, na animação de Bungou to Alchemist

Antes de falar dessas franquias, eu acredito que seja importante falar de dois conceitos da área de Letras: intertextualidade e releitura. Essas duas coisas têm pontos em comum, mas não são exatamente sinônimo uma da outra. Quando se fala de intertextualidade, a gente lembra de paralelos entre uma referência e um trabalho novo; um bom exemplo disso é a graphic novel A Liga Extraordinária, de Alan Moore e Kevin O’ Neill, publicada no ano de 1999. Os protagonistas dessa história são figuras já conhecidas da literatura clássica do século XIX, como Henry Jekyll (e seu outro eu, o sr. Hyde), Mina Harker, capitão Nemo, entre outros. Esses personagens são retirados de seus contextos originais, e re-inseridos na história nova criada por Moore e ilustrada por O’ Neill — suas características pessoais são mantidas, mas a maneira como o ambiente modificado afeta e desenvolve essas características é que são o ponto de destaque aqui. Mina Harker tem um papel de protagonismo no romance de Bram Stoker, seu lugar de origem, mas ela ainda se submete a esta ou aquela visão de papel feminino que o autor tinha em mente; a forma como um autor enxerga seu mundo se transfere para aquilo que ele escreve, mesmo que seja de maneira parcial ou involuntária. O que se pode concluir disso é que a Mina de Bram Stoker recebeu de seu criador uma série de características que a definem como personagem, e que ela tem seu arco narrativo desenvolvido de um jeito xis, dentro do romance original — já em A Liga Extraordinária, a personagem mantém o grupo de fatores que a compõem, mas é colocada em um contexto diferente, o que faz com que ela reaja de forma diferente também. Ainda que o resultado mude, e que Mina se torne alguém diferente em cada uma das obras, ela continua tendo um ponto de convergência: ser Mina Harker, filha de uma família abastada que acabou envolvida na confusão com Drácula. Esse ponto de convergência é o que define a intertextualidade: é uma referência a algo exterior ao texto em questão, mas que também faz sentido dentro desse mesmo texto. Um exemplo bastante claro de intertextualidade em Bungou Stray Dogs são os nomes das habilidades dos autores; Atsushi, que tem o poder de se transformar em um tigre, possui a habilidade Besta sob o luar, que é inspirada diretamente em um conto do autor Atsushi Nakajima, cujo protagonista também se transforma em tigre. Simplificando um pouco, pode-se dizer que intertextualidade é referenciar um texto A em um texto B, de forma que eles fiquem interligados por essa referência.

Já a releitura é um conceito de que se pode lembrar dos tempos de ensino fundamental, e das aulas de artes dessa época. É bastante comum que, para estudar pintores e artistas famosos, os professores deem como tarefa para as crianças fazer uma releitura de uma das obras mais famosas desses pintores: as opções vão desde redesenhar a expressão enigmática da Monalisa a lápis de cor até recriar o cenário de Noite Estrelada, de Van Gogh, com personagens da cultura pop atual. Justamente por serem pessoas diferentes dos autores originais e terem à disposição materiais distintos, o resultado da releitura quase sempre sai diferente da referência. Se a intertextualidade envolve fazer referência a outro texto, a releitura é o ato de recriar um elemento — ou todos eles — do texto, de maneira que as opiniões, materiais, intenções do re-leitor fiquem claras. Se usarmos a Mina Harker de Drácula e de A Liga… como exemplo mais uma vez, pode-se notar que além de usar a personagem de Stoker em uma história diferente, Moore também alterou certas características dela para que ela tanto se adequasse ao novo contexto quanto para que ela se tornasse uma criação sua. As características intrínsecas de Mina Harker que fazem com que ela seja identificável como Mina Harker ainda estão lá, assim como, nas releituras da Monalisa, os braços levemente cruzados abaixo dos seios e o meio-sorriso são elementos constantes que ajudam a distinguir qual foi a referência usada.

Releitura de Noite Estrelada com Snoopy, por https://www.sagittariusgallery.com/

Chegamos então a Bungou Stray Dogs e Bungou to Alchemist: eles usam os mesmos personagens? Eu particularmente acredito que não.

Antes disso, porém, uma breve introdução a Bungou to Alchemist. Assim como seus predecessores no site da DMM, Touken Ranbu e Kantai Collection, a ideia é que exista um plano em que o jogador é inserido no contexto de mestre, ou aquele capaz de invocar os personagens em questão. TouRabu tem as espadas antropomorfizadas, KanColle tem os navios transformados em garotas; o jogador/mestre então usa determinados materiais para invocar os espíritos dessas espadas/navios, e monta com eles times para cumprir as missões da história, que consistem em evitar que algo seja mudado por um grupo de oponentes. Seguindo esse padrão, o jogo Bungou to Alchemist, lançado em 2016, tem como premissa que um grupo de oponentes pretende acabar com a existência dos livros e da literatura mudando drasticamente o andamento das histórias desses livros. O primeiro episódio da animação de BunAl é bem didático quanto a isso: o livro da vez é Corra, Melos, de Osamu Dazai (essa história é, inclusive, uma releitura do mito original grego), e por conta da intervenção dos chamados Maculados, o rumo da aventura de Melos e Serinúntio está prestes a ser mudado para sempre. Dazai, autor da obra em perigo, acaba no papel de Melos, e ao invés de enfrentar o medo da morte e correr para salvar a vida de seu melhor amigo, decide ficar na cidade onde o casamento de sua irmã ocorrera. A moral da história de Melos é justamente a confiança que os amigos tinham um no outro, e a certeza que Serinúntio guardava em seu coração de que Melos faria de tudo para voltar a tempo de salvá-lo. Se Melos não voltasse, essa moral seria perdida, assim como o livro em si também seria destruído. Para evitar a desgraça iminente, Ryunosuke Akutagawa é enviado pelo Alquimista (algo como o self-insert do jogador) para dentro do livro, com a missão de derrotar o Maculado lá dentro e resgatar o autor preso dentro de sua própria história. Tudo termina bem, e Dazai se torna mais um dos mestres literários a viver na Biblioteca, onde todos ficam a postos para entrarem nos livros corrompidos e tentarem salvar seus colegas.

O personagem Osamu Dazai, ao ser invocado no jogo de Bungou to Alchemist: “Eu sou Osamu Dazai! E como todo mundo por aqui, eu também sou um escritor genial!”

Muitos nomes são familiares para quem acompanha Bungou Stray Dogs: Dazai, Akutagawa, Tanizaki. Mas eles são diferentes, se comportam de maneira diferente — e é aqui que os conceitos de releitura e intertextualidade entram em ação. BSD pode ser considerado um caso de intertextualidade, a meu ver, porque os personagens da história de Kafka Asagiri não representam a figura dos autores em que foram inspirados; eles são criados a partir das características que são reconhecíveis em cada autor, mas ao mesmo tempo pertencem a um universo diferente e cumprem papéis diferentes. Vamos voltar a Atsushi Nakajima: o escritor com esse nome, além de escritor, era também professor, e até onde se sabe, não tinha uma rixa de vida e morte com o também autor Ryunosuke Akutagawa. Entretanto, Asagiri pinçou as características que costumam ser atribuídas ao autor e as reorganizou de maneira que continuem reconhecíveis dentro do novo personagem, mas tendo como objetivo criar um personagem para o contexto específico de sua história. Ambos os Atsushis têm problemas de autoconfiança e solidão, mas o detetive de Asagiri não é uma representação do escritor em outro universo.

O personagem Atsushi Nakajima, de Bungou Stray Dogs

Em Bungou to Alchemist, a premissa é exatamente que os personagens retratados no jogo são versões sobrenaturais dos autores em que foram inspirados; o Atsushi Nakajima de Bungou to Alchemist mantém características de sua contraparte real, e continua sendo um escritor — obviamente num contexto de sobrenatural e atemporalidade, mas ainda assim continua sendo uma representação do romancista Atsushi Nakajima. Ele troca cartas com Kyouka Izumi, por exemplo, e usa os mesmo óculos redondos que podem ser vistos sendo usados por Nakajima-sensei em algumas fotos. Nesse caso, o princípio da releitura pode ser aplicado: existe um material original, e ele é remontado e reorganizado de maneira que apresente diferenças relevantes, mas mantenha a possibilidade de enxergar através da camada de mudanças para que o consumidor veja de onde surgiu a ideia original.

Kyouka Izumi e Atsushi Nakajima em Bungou to Alchemist

Isso não quer dizer que uma representação seja mais válida do que a outra; elas só cumprem propósitos diferentes. Em Bungou Stray Dogs, o foco é na história que acontece, e ela precisa de personagens específicos para esse contexto; sendo assim, Asagiri-sensei remodelou aquilo que se reconhece dos autores que usou como referência para criar personagens que se encaixassem no enredo da história sendo contada. O ponto de destaque é justamente o quanto os personagens têm em comum com os escritores em que foram inspirados, mas ainda assim mantêm também uma individualidade que só lhes é dada porque não têm a obrigação de serem uma representação fiel dos mestres literários. Enquanto isso, Bungou to Alchemist brinca com as inúmeras hipóteses possíveis dentro da ideia de que “bem, nós invocamos os espíritos de grandes autores, eles têm armas, mas continuam sendo as pessoas que eram, e muito provavelmente vão brigar entre si”. É justamente por ser “impossível” que essas interações aconteçam que é tão satisfatório assisti-las e chegar à conclusão de que, se houvesse, a oportunidade, realmente, Ranpo Edogawa ficaria curiosíssimo sobre o problema de dupla personalidade de Atsushi Nakajima.

Ranpo Edogawa e Atsushi Nakajima, em Bungou to Alchemist. Ao invés de se transformar em um tigre (literalmente), esse Atsushi tem uma segunda personalidade mais violenta que aparece nas batalhas

Ainda que haja diferenças entre a maneira como cada uma das franquias represente os escritores clássicos, eu acredito que existem vantagens em cada umas, e que, no fim das contas, ambas prestam o mesmo serviço ao público consumidor: o de tornar relevante e apresentar a novas gerações o trabalho de pessoas que ficaram marcados na história e, cada um de sua forma, mudaram o mundo ao seu redor.

Pra quem tiver interesse em saber mais sobre a relação que os personagens de BSD têm com os escritores em que foram inspirados, fica aqui o link pro meu podcast Bungaku Nerd, que está disponível em várias plataformas — incluindo o Spotify: https://anchor.fm/bungakunerd

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.