Ryunosuke Akutagawa: de escritor solitário a mafioso desalmado (ou mais um ensaio comparativo sobre personagens de Bungou Stray Dogs)

Mai
7 min readJul 24, 2019

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A essa altura do campeonato, acredito que todo mundo que acompanha o anime Bungou Stray Dogs já saiba que a maioria esmagadora dos personagens é baseada em escritores e suas habilidades, inspiradas em suas respectivas obras. Em alguns casos, os paralelos entre autor e personagem ficam bastante explícitos, seja no comportamento ou em similaridades na história da versão ficcional deste ou daquele mestre literário. Mas isso não é regra no enredo de Kafka Asagiri e seus spinoffs, e cheguei à conclusão de que o Akutagawa mafioso de Yokohama seria um bom exemplo dessa diferença.

Ryunosuke Akutagawa, o contista, nasceu em 1892 na região de Tóquio. Por conta da instabilidade emocional e psicológica da mãe, o casal de tios da criança tomou-a sob custódia, e por eles o bebê dos Akutagawa foi criado. Ainda que houvesse uma certa proximidade, não há como negar que o jovem Ryunosuke tenha se sentido extremamente solitário por ter sido, de certo modo, abandonado pela mãe biológica; essa Solidão se acentuaria com a morte da mãe quando Akutagawa tinha por volta de 11 anos de idade, e desde então tornou-se sua companheira e musa literária.

Da mesma forma, o órfão Akutagawa que cresceu nas favelas de Suribachi na Yokohama ficcional de Bungou Stray Dogs vivia diariamente o isolamento de quem não pode contar com ninguém, a não ser consigo mesmo, para sobreviver às adversidades.

Foi sua entrada na Máfia do Porto que apaziguou o constante pesar de estar sozinho; mais especificamente, a atenção — ainda que violenta e desdenhosa — do então executivo da Máfia Osamu Dazai preencheu o jovem usuário de habilidade de uma motivação até então desconhecida para ele. Quando Dazai abandonou a organização e, mais tarde, adotou um novo pupilo, a solidão de Akutagawa voltou a corroê-lo por dentro — mais uma vez ele estava sozinho, e mais uma vez teria que abrir à força as portas da vida; somando-se a isso entra a concorrência instintiva do jovem mafioso com Atsushi, tanto para provar sua própria capacidade quanto pelo merecimento da atenção de Dazai. Talvez a ânsia do Cão da Máfia pela aceitação e reconhecimento de seu antigo mentor esteja enraizada na necessidade de sentir-se útil, de provar-se capaz e digno de sobreviver a qualquer custo.

Apesar dessas similaridades sutis entre personagem e pessoa — que foram apontadas no guidebook da primeira temporada de Bungou Stray Dogs, publicado pela Kadokawa em 2016 -, eu pessoalmente acredito que o Akutagawa de Asagiri tenha mais em comum com o protagonista do conto que deu nome à sua habilidade. Primeira publicação do aspirante a escritor Ryunosuke Akutagawa, a princípio a história inspirada em um conto do século XII não fez muito sucesso, mas o apoio do já famoso Soseki Natsume inspirou o jovem autor a continuar sua empreitada. O enredo conta a história de um homem sentado sob os portais do Rashoumon enquanto espera a chuva torrencial estiar; ainda que a chuva pare, o homem pensa, ele não tem para onde ir. Assim como muitos outros, ele havia sido demitido — após anos de trabalho para uma família mais abastada, os ônus da guerra atingiram mesmo os mais ricos, o que evidentemente acabou com os menos apossados sendo os mais prejudicados. A pobreza tomava conta da região, e já havia tempos que o portal Rashoumon — agora em estado decadente por falta de manutenção — era usado como depósito para cadáveres, tanto aqueles de família pobre quanto os atingidos por doenças e pragas. Não existia espaço para princípios se alguém quisesse sobreviver a esse cenário, mas o homem se recusa a decair tanto, moralmente falando. Por fim, porém, o instinto fala mais alto, e o protagonista decide esquecer quaisquer inclinações éticas que pudessem restar em sua cabeça — “A única saída é tornar-me ladrão”, pensa consigo mesmo. Esse cenário é familiar se lembrarmos do primeiro arco do mangá e anime, em que Atsushi no começo se recusa a roubar mesmo que isso signifique sua morte, mas à medida que seu corpo enfraquece e a perspectiva de morrer se torna cada vez mais palpável, já não existem dúvidas: se, para sobreviver, é necessário tirar do outro aquilo de que preciso, então é isso que farei.

O Akutagawa ficcional desde o princípio não se opõe a usar qualquer método que seja, desde que isso garanta sua sobrevivência e de seus companheiros em Suribachi. Na light novel Beast, um universo alternativo de Bungou Stray Dogs escrito também por Asagiri, é narrada a infância parca em suprimentos e farta em violência dos órfãos na periferia. É como tática de sobrevivência que Akutagawa manifesta pela primeira vez sua habilidade: com a manga do casaco transformada em uma lâmina, ele defendia a si mesmo e às outras crianças de possíveis rivais e, frequentemente, de adultos que os atacavam por enxergarem no grupo de crianças um alvo fácil. Permanecer vivo apesar das contrariedades sempre foi a prioridade — mesmo que isso significasse roubar, ferir ou matar o outro. Não existe espaço para questionamentos morais quando existe a chance de morrer de fome ou ser atacado a qualquer momento.

Superficialmente decidido a abrir mão de seus princípios, o protagonista do conto Rashoumon resolve se abrigar da chuva em uma galeria sob os portais, na esperança de que o lugar esteja menos gelado e abarrotado de cadáveres em putrefação. O ex-servo é surpreendido, porém, por uma fraca iluminação em um dos cômodos da galeria, e, pronto para sacar a espada em caso de ameaça, avança em direção à luz tremeluzente. Lá dentro, a figura esfarrapada de uma velha se curva sobre corpos mortos, arrancando fios de cabelo de suas cabeças um por um, sob a luz de uma vela segura entre vãos das tábuas do chão. Em um segundo todo o discurso inicial do protagonista sobre fazer o que é preciso para sobreviver cai por terra, substituído por um senso de superioridade moral em relação àquela criatura que profana os cadáveres de cidadãos de bem, arrancando-lhes os cabelos. O homem então assusta a velha de propósito e a imobiliza no chão para questionar por que ela estava mexendo nos mortos. A idosa responde que os fios de cabelo arrancados seriam usados para fazer perucas que depois seriam vendidas, e que isso era sua única opção de sobrevivência; um dos cadáveres, a velha argumenta, era uma mulher que vendia pele seca de peixe como se fosse enguia aos soldados mais próximos, e justamente por viver de trambiques ela provavelmente não se importaria de ter seu corpo remexido, se isso significasse prolongar a vida de outro, assim como o truque havia garantido a sua. Talvez por ainda se sentir superior àquela criatura ou por ter voltado a pensar como antes, o homem arranca as roupas da velha e sai correndo, decidido a vende-las mais tarde; tudo que ele diz antes de partir é que, se a ladra de corpos está tão convencida do perdão da falecida vendedora de enguias, então ela de certo o perdoaria por levar suas roupas, mesmo que elas sejam tudo que a velha tem.

Da mesma forma, é possível perceber um certo senso de superioridade do Akutagawa mafioso em relação à hesitação de Atsushi; é como se Akutagawa, por ter chegado antes à conclusão de que sobreviver exige certos sacrifícios, se enxergasse na posição de julgar seu rival, que se recusa a tomar as decisões que ele tomaria, caso estivesse na mesma posição do garoto tigre.

Voltando à questão das habilidades propriamente ditas, Rashoumon dá a seu usuário a capacidade de controlar as barras da roupa vestida de acordo com sua vontade. No começo, enquanto vivia em Suribachi com a irmã e os outros órfãos, Akutagawa usava uma pequena lâmina surgida da manga de seu casaco para afastar possíveis inimigos, e isso era suficiente; depois do treinamento com Dazai e da pressão de ser um membro da máfia, Rashoumon passou de ferramenta de defesa a instrumento de ataque. Akutagawa agora toma a dianteira, e ao invés de esperar que alguém venha tomar dele o pouco que tem, o jovem mafioso passou a instilar nos inimigos um terror que os mantêm afastados o suficiente para não serem considerados uma ameaça. Apesar de não precisar mais brigar por restos de comida ou pedaços de pano que mal cubram o corpo, o instinto de sobrevivência de Akutagawa se mantém firme: qualquer possível quebra de status já é sentida como ameaça ao estilo de vida criado dentro da máfia, e precisa ser erradicado.

O que antes era uma simples lâmina usada em ataques sorrateiros, mas bastante francos, se tornou um quase monstro, uma espécie de guarda-costas sobrenatural; a relação de confiança que Akutagawa desenvolveu com sua habilidade de se proteger por meio do ataque é visível nas formas que Rashoumon toma ao longo dos arcos do mangá e do anime. Talvez a grande sombra negra de tecido seja uma maneira de evitar fisicamente a solidão dolorida, e a falta que as figuras familiares provavelmente fazem ao jovem mafioso; ainda há nele sede por seguir em frente, e tudo que se pode fazer pelo garoto que cresceu matando para não morrer é que ele não tenha o mesmo fim do autor em quem foi inspirado — que o Ryunosuke Akutagawa da Yokohama sobrenatural não considere sua trajetória o simples relato da vida de um idiota.

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.