Sobre figuras maternas e hierarquia social em “Parasita”, de Bong Joon Ho, e “Sol Poente”, de Osamu Dazai

Mai
7 min readMar 3, 2021

Disparidade econômica e má distribuição de renda não são nenhuma novidade, e a hierarquização social em classes que surgem em decorrência disso também não são. É de se esperar, então, que essa realidade seja representada de alguma forma na arte: os exemplos vão desde o charmoso fora-da-lei Robin Hood, passando por “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, até boa parte das novelas das nove na Globo. Um dos exemplos mais recentes que aproveita esse conflito como ponto de partida é o filme “Parasita”, do diretor sul-coreano Bong Joon-Ho, lançado em 2019 e ganhador do Oscar de melhor filme.

Além da atenção merecida que a obra recebeu por ser um dos poucos filmes não-americanos a ganhar o prêmio, a visão do diretor sobre o contraste no modo de vida entre a família Park e a família Kim é um dos pontos altos do filme. A história começa quando os membros da família Kim conseguem, um a um, se infiltrar na casa dos Park como empregados, fingindo não terem nenhuma ligação uns com os outros, a fim de melhorar sua condição financeira. O contraponto à esperteza e improviso dos Kim é a postura de superioridade que os Park adotam quando lidam com a outra família. Em especial, fica evidente o quão desconectada da realidade Yeon-Kyo, a mãe da família Park, apresenta ser ao logo da história. Ou melhor, o quanto ela é apegada à própria visão de realidade e ignora por completo que existam pessoas que vivam em condições infinitamente mais precárias que as dela. Na frente de amigos e colegas do marido, Yeon-Kyo se mostra o retrato perfeito da esposa ideal, o que inclui passar a impressão de que ela tem completo controle sobre a casa e seus filhos. Isso tudo, é claro, não passa de fachada, já que a relação entre sua filha adolescente e seus professores de inglês lhe passou despercebida, enquanto sua atenção exagerada no filho caçula foi o que possibilitou a entrada de mais membros da família Kim em sua casa. Em “Parasita”, o diretor usa essas caricaturas de seres humanos como um exemplo claro e fácil de entender do quanto a má distribuição de renda afeta negativamente a grande maioria da população sul-coreana — para o pessoal do podcast “Queimando Filme”, em seu episódio sobre o filme em questão, essas pessoas ricas são fáceis de serem enganadas. De certa forma, então, pode-se dizer também que existe um traço muito forte de ignorância (ou inocência) que ajuda no processo de dissociação de Yeon-Kyo e sua família do mundo que os cerca.

Um pouco antes de assistir “Parasita” pela primeira vez, eu havia recém terminado de reler o romance “Shayo”, de Osamu Dazai (o título pode ser traduzido como “Sol Poente”, e neste texto resolvi usar esse segundo nome, já que não temos no Brasil uma adaptação recente do livro), que é um dos meus livros favoritos. Como boa parte da obra de Dazai, esse romance publicado em 1947 é narrado em primeira pessoa, o que dá um tom bastante pessoal e intimista à história. Kazuko, nossa narradora, nos empresta seu ponto de vista a respeito dos eventos que levaram à mudança que ela e sua mãe tiveram que fazer em suas vidas após a morte de seu pai. A família de Kazuko era abastada, e ela e seu irmão cresceram em um ambiente de abundância e fortuna; Kazuko, como toda mulher de sua idade, casou relativamente cedo com um homem de posição social parecida (do qual ela se divorciou não muito tempo depois), enquanto seu irmão mais novo, Naoji, se tornou um dos muitos jovens boêmios que parecem ser a auto-inserção do autor Dazai em suas histórias, e foi dado como morto depois de ter sido convocado para a guerra. Com a morte do pai, a fortuna da família ficou a cargo de seu tio materno, que dava a ela e sua mãe uma mesada com a qual deveriam viver. Por fim, sob a justificativa de que a vida em Tóquio pesava demais financeiramente, Kazuko e sua mãe venderam a casa da família na cidade e se mudaram um vilarejo no interior; para conseguir lidar com a diferença de rotina e a perda dos privilégios com os quais cresceu, Kazuko decide que deve se tornar uma mulher capaz de trabalhar duro, e só assim ela daria conta de ajudar a mãe a superar o luto e a mudança. Essa nova versão de si mesma é o oposto da mulher que sua posição social deveria ser, e o choque é a primeira reação de Kazuko em várias situações em que ela vê sua visão de mundo questionada. Uma coisa que nunca muda, porém, é a maneira como ela enxerga sua mãe: mesmo com todas as adversidades, a viuvez e a mudança de casa, a mãe continua sendo um exemplo de comportamento e delicadeza. Ela é vista como um modelo de dignidade, e nas ocasiões em que ela se mostra desconectada ou ignorante de algo, Kazuko ainda a descreve como sendo dona de uma inocência quase infantil, e que isso apenas aumentava a impressão de nobreza que ela passava. Kazuko e Naoji (que volta mais tarde no romance viciado em analgésicos e tem grande dificuldade de se adaptar ao interior) atribuem à mãe um certo status de divindade, e Naoji chega a afirmar em uma de suas conversas com a irmã sobre como a mãe deles era “a última aristocrata viva”; enquanto falam sobre sua antiga vida na cidade, Naoji comenta a respeito de seus amigos de escola e suas respectivas famílias, e como eles tinham poder aquisitivo e nomes importantes, mas nenhum deles tinha a nobreza de sua mãe. Kazuko chega à conclusão também de que ela mesma não é uma aristocrata de verdade, que uma aristocrata não seria capaz de lidar com o que ela estava enfrentando no mundo, e assume uma postura de independência e esperança ao deixar para trás as expectativas que ela costumava ter consigo mesma.

Depois de terminar de reler o livro e então assistir a “Parasita”, não consegui deixar de pensar no quanto as duas personagens mães eram semelhantes, mas vistas de forma completamente pelos outros personagens e pelo autor/diretor da obra. Em “Sol Poente”, mesmo o gesto mais trivial da mãe era visto como uma prova de sua realeza: Kazuko descreve o modo como sua mãe toma sopa como sendo unicamente especial, e que se qualquer outra pessoa tentasse tomar sopa da mesma forma, acabaria falhando miseravelmente em manter a postura digna. A mãe de Kazuko e Naoji é descrita na narrativa como sendo inocente feito uma criança, enquanto Yeon-Kyo Park é mostrada no filme como sendo ignorante, justamente por causa de sua posição social. “Sol Poente” fala sobre a aristocracia, sobre uma classe de pessoas nobres cujos privilégios nada mais eram que a consequência natural de sua posição social — Naoji questiona sobre o próprio comportamento e a maneira como ele lidava com os conflitos com os amigos mais pobres, mas em momento algum esse questionamento é voltado para a mãe. É quase como se ela não fosse um ser humano de verdade, mas um modelo inalcançável de comportamento. Por outro lado, a alienação de Yeon-Kyo causa sofrimento não apenas a ela mesma, mas ao filho caçula, que não é educado com eficiência; à filha adolescente, que sente a necessidade de se envolver romanticamente com dois adultos diferentes para que se sinta acolhida e amada; e, por fim, às pessoas que trabalham para ela. A cena em que ela planeja a festa do caçula e liga para os tutores de seus filhos (sem saber ainda que os dois eram irmãos), praticamente exigindo que eles comparecessem à comemoração, sem sequer se perguntar se eles estariam confortáveis com a situação ou se queriam ir para a festa, é um exemplo bastante claro disso: para ela, o mundo girava em torno de sua família, enquanto o resto dos pobres mortais não passavam de coadjuvantes ansiosos por um segundo sob os holofotes. Quando leio “Sol Poente” e penso na relação de Kazuko e Naoji com sua mãe, a imagem que logo me vem à cabeça é a de uma rainha bondosa em um conto de fadas; não existe razão para questionar sua autoridade, porque ela nasceu para aquele papel, e seu reino é construído com sabedoria e gentileza. Já “Parasita” me faz questionar por quanto mais tempo nós vamos ter que lidar com um número ínfimo de pessoas controlando a maioria do dinheiro gerado no país, e ainda por cima agindo como se elas fossem superiores de alguma forma. Apesar da diferença na maneira como são retratadas, tanto a viúva de “Sol Poente” quanto a mãe socialite de “Parasita” têm sua “nobreza” saudada por seus respectivos círculos sociais — ou melhor, são acolhidas enquanto seu poder aquisitivo as torna relevantes dentro daqueles contextos. Mas assim que algo quebra essa fachada — seja a viuvez ou o literal assassinato de uma pessoa na festa de aniversário do seu filho — só a ideia de “nobreza” não é suficiente, e resta a essas mulheres lidarem com as migalhas que restaram do que costumava ser o ápice do sucesso. No caso de “Sol Poente”, a mãe de Kazuko e Naoji parecia ter se resignado com a vida que levaria a partir dali, e tem sua maior vitória no momento em que se opõe ao irmão mais novo, que recomendava que Kazuko fosse mandada para viver e trabalhar em outro lugar; nesse momento, a viúva bateu o pé e insistiu que ela e Kazuko poderiam continuar vivendo juntas (mesmo que com menos dinheiro), o que só aumentou o carinho mútuo entre mãe e filha. Já a família Park muito provavelmente continuou abastada, mas o trauma causado pelos eventos do terceiro ato — e que foram consequência das ações deles mesmos — continuaria sendo uma marca, uma cicatriz, para lembrá-los de seus erros e do quão irrelevante a riqueza material deles poderia ser.

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Mai

Gosta de literatura, mangá e gatos. Escreve sobre livros e personagens que curte, e toca um podcast de mesmo nome sobre anime e literatura.